A tecnologia nos faz melhores
O ensaísta que
criou a revista Wired
tem uma reflexão original para esse tema
central da vida moderna. Para ele, cada
nova ferramenta só cumpre seu papel ao
ampliar nossas possibilidades de escolha.
Neste ensaio, que servirá de embrião para
seu novo livro, What Technology Wants
(O que Quer a Tecnologia), Kelly analisa
o significado da tecnologia para
a existência humana
tem uma reflexão original para esse tema
central da vida moderna. Para ele, cada
nova ferramenta só cumpre seu papel ao
ampliar nossas possibilidades de escolha.
Neste ensaio, que servirá de embrião para
seu novo livro, What Technology Wants
(O que Quer a Tecnologia), Kelly analisa
o significado da tecnologia para
a existência humana
A palavra tecnologia sugere objetos.
Coisas complexas e feitas de átomos. Locomotivas a vapor,
telefones, computadores, substâncias químicas e chips
de silício. Quando esse mundo de coisas começou a
surgir, séculos atrás, encaramos o fenômeno
como uma revolução material, embora todas as mudanças
que trazia fossem, na verdade, causadas pelo desenvolvimento da
capacidade de utilizar a energia de forma orientada. A magia do
material estava no fato de conseguir conservar, transmitir ou exibir
energia em pequenas quantidades no momento certo (sinais) ou em
explosões sob demanda (quantidade de calor).
Esses objetos perderam recentemente
parte de sua massa. Começamos a enxergá-los como ação.
Hoje, o termo tecnologia sugere softwares, engenharia genética,
realidade virtual, banda larga, formas de vigilância e inteligência
artificial. Se uma dessas coisas caísse no seu pé,
você não machucaria o dedão. A tecnologia tornou-se
uma força. É um verbo, não mais um substantivo.
Sua ação mostrou-se tão forte que, agora, percebemos
a tecnologia como um superpoder e também como algo que sempre
leva a culpa quando uma coisa dá errado. Na realidade, a
tecnologia é matéria, é força e é
muito mais. É tudo o que criamos: literatura, pintura, música.
Bibliotecas são tecnologias. Como também o são
os registros contábeis, a legislação civil,
os calendários, as instituições, todas as ciências,
bem como o arado, as roupas, os sistemas de saneamento, os exames
médicos, os nomes de pessoas e o alfinete de segurança.
Tudo o que nossa inteligência produz pode ser considerado
tecnologia.
Parece estranho que um soneto
de Shakespeare ou uma fuga de Bach sejam colocados no mesmo plano
de coisas como a bomba nuclear ou o walkman? Mas, se 1 000 linhas
de letras são uma tecnologia (como o código de uma
página HTML, usado para veicular textos e imagens na internet),
então
1 000 linhas de letras em inglês (Hamlet) também devem ser. Não é possível separar o que é tecnologia tanto no livro como no filme O Senhor dos Anéis. A versão literária do romance original é tão tecnológica, no sentido estrito da palavra, quanto a versão digital das criaturas e dos lugares fantásticos expostos na tela. Ambas são obras da imaginação humana. Ambas afetam o público de forma poderosa.
1 000 linhas de letras em inglês (Hamlet) também devem ser. Não é possível separar o que é tecnologia tanto no livro como no filme O Senhor dos Anéis. A versão literária do romance original é tão tecnológica, no sentido estrito da palavra, quanto a versão digital das criaturas e dos lugares fantásticos expostos na tela. Ambas são obras da imaginação humana. Ambas afetam o público de forma poderosa.
A tecnologia, portanto, pode
ser considerada um tipo de pensamento – um pensamento expresso.
Seria possível encarar o elaborado sistema legislativo que
norteia as sociedades ocidentais como uma variedade de software.
Trata-se de um código, um conjunto complexo de regras, mas
que funciona com suporte no papel, não em um computador.
Tanto o código do sistema legislativo quanto o de um software
são manifestações do pensamento humano.
Muitas pessoas se perguntam como
a tecnologia pode tornar o homem melhor. Simples: da mesma maneira
que a tecnologia das leis torna os homens melhores. Um sistema legal
nos mantém responsáveis, estimula o senso de justiça,
contém impulsos indesejados, alimenta a confiança,
e assim por diante. Há, contudo, leis boas e más,
e alguns sistemas legislativos (tecnologias legais) são melhores
do que outros. A resposta correta a uma má legislação
não é ausência de legislação.
É, sim, uma legislação melhor. A resposta correta
a uma idéia ruim não é parar de pensar. É
uma idéia melhor. A resposta correta a uma tecnologia ruim
não é parar a tecnologia. É uma tecnologia
melhor. Pelos meus cálculos, a soma total das tecnologias
é igual à civilização. Civilização
é tecnologia. Tecnologia é a obra cumulativa agregada
da imaginação e da invenção humanas.
Mas qual é a contribuição
que a tecnologia realmente nos dá? O avanço proporcionado
por ela nem sempre é evidente e perceptível. Todo
pensamento pode ser subvertido. Nesse sentido, toda tecnologia pode
ser vítima de abusos. Além do mais, todas as soluções
que a tecnologia oferece trazem também novos problemas. Mas
é preciso observar que, em última instância,
a tecnologia amplia as nossas possibilidades de escolha. Em geral,
uma tecnologia apresenta aos seres humanos outra maneira de pensar
sobre algo. Cada invenção permite outra forma de ver
a vida. Cada ferramenta, material ou mídia adicional que
inventamos oferece à humanidade uma nova maneira de expressar
nossos sentimentos e outra forma de testar a verdade. À medida
que novas maneiras de expressar a condição humana
são criadas, amplia-se o conjunto de pessoas que podem encontrar
seu lugar único no mundo.
A tecnologia nos proporciona
escolhas. Assim, sua principal contribuição está
expressa nas possibilidades, nas oportunidades e na diversidade
de idéias. Sem ela, temos muito pouco disso. Nosso trabalho
coletivo é substituir tecnologias que limitam nosso poder
de escolha por aquelas que o ampliam. O telefone, por exemplo, é
uma tecnologia que amplia continuamente as oportunidades –
e fecha muito poucas. O DDT (composição química
usada como inseticida) é uma tecnologia que abre importantes
possibilidades, mas restringe algumas outras. A engenharia genética
inaugura um vasto terreno de escolhas, mas seu potencial para restringir
muitas outras é amplo e incerto.
A tecnologia pode tornar uma
pessoa melhor? Sim, mas somente se oferecer a ela novas oportunidades.
Oportunidade de obter excelência com a mistura única
de talentos com que nasceu. Oportunidade de encontrar novas idéias
e novas mentes. Oportunidade de ser diferente de seus pais. Oportunidade
de criar algo. Serei o primeiro a acrescentar que, isoladas –
sem nada em torno delas –, essas oportunidades são insuficientes
para produzir a felicidade. A escolha funciona melhor quando há
valores para guiá-la. De qualquer forma, considero que a
tecnologia é necessária para o aprimoramento humano,
da mesma maneira que a civilização. O mundo da tecnologia
e a civilização são a mesma coisa.
Um subconjunto especial de seres
humanos pensa de forma diferente. Avista o caminho para o aprimoramento
no conjunto limitado de opções existente, digamos,
na cela de um mosteiro, na caverna de um ermitão ou nas possibilidades
deliberadamente restritas de um guru errante. Mas a maioria das
pessoas, em quase todos os momentos na história, vê
o estoque acumulado de possibilidades em uma civilização
como algo que as torna melhores. É por essa razão
que fundamos a civilização/tecnologia. É por
essa razão que temos cidades e bibliotecas. Elas produzem
escolhas. Essa é a grande contribuição da tecnologia:
abrir possibilidades – em montanhas sempre maiores de diversidade.
Como a própria vida biológica (apesar de seus muitos
horrores), acredito que a criação de novas possibilidades
representa um bem inequívoco para todos nós.
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